sobre correr
Eu ando um tanto que desanimada. Gostaria de ser um pouco mais eloquente que isso, mas é difícil. Se abrir desse jeito, em prosa, é bem mais complicado do que parece. Não estou lá muito acostumada. Desde bem cedinho aprendi a só guardar esse tipo de coisa a sete chaves, bem lá no fundo. Isso é algo que tenho lutado pra desaprender, mas sabe como é. Já não estou mais tão jovem assim (embora que ainda bem jovem, considerando tudo!), e lidar com qualquer coisa que envolva uma mudança tão dramática na minha forma de ser acaba sendo um tanto que complicado.
Tenho poucas formas de colocar minhas ansiedades pra fora. Eu até poderia vomitar todos os meus medos e inseguranças pra minha namorada constantemente, mas eu estaria sendo uma péssima parceira. Não tenho grana ou muita cabeça pra terapia. Arte é algo relaxante, mas eu não diria que serve pra tratar todo o esgoto que acumula dentro da fossa séptica que é a minha cabeça. Bem que eu gostaria que fosse! Adoro escrever, adoro rabiscar, fazer coisinhas com a mão. A humanidade foi feita pra isso. Me sinto humana fazendo tudo isso. Mas não é o suficiente, sabe?
Mas nem só de arte se resume nossa humanidade. Nós temos um corpo. De carne, osso, sangue. Todo desengonçado. Que foi feito pra se mover. E eu amo mover ele. É uma paixão que tenho desde a adolescência, quando eu decidi que talvez artes marciais seriam a minha praia. E acabou sendo! Eu acabei conhecendo meu corpo como eu jamais havia conhecido antes. Foi quando eu comecei a cuidar dele. E por consequência, cuidar de mim.
Dependendo a criação que você teve, se cuidar provavelmente nunca foi uma prioridade. Homem não é ensinado a se cuidar. Por consequência, não aprendi. E não estou falando de papo fitness ou coisa assim (embora que isso tenha me ajudado a sair de um sedentarismo um tanto que preocupante), mas se cuidar de uma maneira bem mais holística. Em cada pequena coisinha do seu dia a dia. Se priorizar um pouco. Saber expressar o que te aflige feito uma pessoa normal. Saber abrir seu coração. Sim, abrir o seu coração é se cuidar. É bem importante!
Mover meu corpo é uma das maneiras que eu tenho de abrir meu coração, além de arte. Colocar pra fora tudo o que eu sinto, mesmo que brevemente. Uma horinha diária que eu dedico apenas pra mim. Só pra correr. Sentir o sangue quente latejando pelas minhas pernas. O bater do meu coração. Meus pulmões gritando por ar. O sol escaldante e o bafo do asfalto no verão. O vento gelado e a garoinha triste do inverno.
Eu amo correr. Não corro com a melhor forma do mundo. Não me alongo tanto quanto eu deveria. Trabalho os meus músculos de uma maneira bem errática e não lá muito científica. Me quebro inteira. Mas não importa! O que importa é correr. Correr muito. Correr pelo simples ato de correr. Só pra viver um pouquinho. Poucas coisas me trazem mais prazer nessa vida. Essa é a coisa, sabe? Me faz sentir viva.
Murakami escreveu sobre algo parecido em um livrinho, Do que eu falo quando falo de corrida. Gosto bastante. Temos experiências um tanto que diferentes com o mesmo hobby. Ele é um homem japonês de meia-idade. Eu sou uma travesti brasileira jovem-adulta. Mas fico muito feliz em saber que alguém que eu admiro tanto tem o mesmo entusiasmo que eu tenho pela coisa. Por correr. Espero conseguir completar uma maratona completa quando eu for quarentona também. Um sonho!
Mas uma coisa que ele comenta é a dedicação. É algo que fala comigo, sabe? Se dedicar completamente a qualquer coisa que você decidir fazer. Não de um jeito coach, de marketeiro paulista doido cheirado. Simplesmente fazer algo que seu corpo clama por fazer. Se permitir focar naquilo que você ama. E correndo, eu estou reaprendendo a me permitir focar em outras coisinhas da minha vida.
Fiquei um bom tempo sem correr. Primeiro eu não tinha tempo. Depois, entusiasmo. Eventualmente perdi completamente o hábito. Mas foi só voltar que tanta coisinha voltou a fazer sentido. Tanta coisinha começou a se encaixar. A sinapses do meu cérebro se realinharam. Voltei a ter energia. Estou me sentindo até um tanto que gostosa! Consigo agora escrever de novo. Fazer arte de novo. Voltei a cuidar da minha humanidade. Parte dela, pelo menos. Parte que estava um tanto que negligenciada. Pode não tratar todo esgoto da minha cabeça, mas não deixa de me fazer bem.
Posso ainda estar desanimada, mas apesar de tudo eu estou até que um tanto que feliz? Talvez mais feliz do que eu jamais fui em todos esses anos. As vezes as coisas são complicadas desse jeito.
Triste, mas feliz.