sword of the berserk: guts' rage
Berserk dominou minha vida por um breve período lá na primeira metade de 2021.
Seja na ida ou na volta do trabalho, no horário de almoço, nas manhãs preguiçosas de domingo, eu estava lendo Berserk. Eu devorei Berserk. Em pouquinho tempo eu já tinha lido mais da metade de tudo que havia sido publicado até então. É meio que difícil descrever o tanto que a arte e a escrita do Miura tinham me pegado. Era fantasia pulp, do melhor jeito que fantasia pulp podia ser. O primeiro terço da série pode ser um tanto que marrenta demais, mas eventualmente ela consegue desenvolver um equilíbrio tão bom com o choque barato e essa estranha e humana sensibilidade que o Miura tinha.
Violência visceral interconectada com genuínos momentos de ternura. Os tenebrosos horrores da existência humana e nosso desesperado desejo de continuar vivendo, apesar de tudo. O peso das cicatrizes que carregamos, e como elas nos moldaram em quem somos hoje. E mais do que tudo, sobre como desenhar monstros horrorosos e perturbados é meio que divertido! É uma obra com um apelo bem único, e não é a toa que é um dos mangás mais bem sucedidos de todos os tempos. Tanta gente diferente ama Berserk, desde garotas trans com a cabeça fritada, executivos japoneses de meia-idade fãs de fantasia, até ratos de academia incompreendidos que orgulhosamente usam alguma arte do Guts como ícone de perfil em redes sociais. Isso é meio que lindo!
O Miura morreu pouco antes de eu terminar Berserk. Os volumes 39 e 40 contêm a minha história favorita da série inteira, e eu não tenho vergonha nenhuma de dizer que é uma das coisas mais lindas colocadas em celulose e nanquim. Acabou sendo a minha despedida de um amor que queimou bem rápido e bem forte, e eu tenho muito carinho por esses volumes. Era o que restava pra tornar Berserk uma das minha coisas favoritas de todos os tempos. Por toda a crueldade e perversidade a qual nós e as pessoas que amamos serão vítimas, a gente ainda vai seguir em frente. Mesmo depois de nossos piores momentos e de nossas piores ações, eventualmente nós vamos nos lembrar de quem somos de verdade. No final das contas, todos nós meio que temos algo em comum com Guts, Casca e companhia. É uma obra doce, até.
Mas o que tudo isso tem haver com Sword of the Berserk: Guts' Rage? Não muito. Mas talvez um tanto?
Digo, é interessante como esse joguinho tem um valor de produção até que alto. Não apenas temos aqui uma história original do Miura, como também temos Susumu Hirasawa voltando do anime de 97 como compositor principal. Os visuais são bem decentes pra um título de Dreamcast, e fazem o máximo pra capturar o charme da arte do mangá. É um jogo bem bonitinho! Não consigo deixar de amar a carranca do Guts em baixa de resolução, ou um lindinho Puck Cabeça de Castanha em todos os seus pouquíssimos polígonos. Eu tenho muito apreço por essa época de jogos licenciados japoneses, que conseguiam fazer tanto com tão pouco. Tirar água de pedra adaptando coisas como Uchū Keiji Shirīzu pro PS2 com genuíno cuidado artístico. É o tipo de coisa que se perdeu no tempo.
A primeira vista Guts' Rage é muito legal! Mas é uma pena que ele acabe sendo meio pênis.
Talvez você pode até dizer que temos aqui um exemplo do que viria a ser um character action. Em 99, bem antes do primeiro Devil May Cry! O foco do combate no moveset e no arsenal do Guts, com uma estrutura levemente arcade, meio que acabam dando um gostinho do que o gênero iria se tornar. Quase um protótipo! Mas como qualquer experimento, os resultados iniciais podem sair um tanto que atrapalhados. Meio sem sal. Combos simples demais, movimentação meio travadinha. Mamão com açúcar na maior parte do tempo, mas com picos de dificuldade absurdos que podem ser facilmente contornados com o abuso de itens que acumulam no seu inventário sem lá muitos problemas.
A única coisa que trás o mínimo de fricção pro gameplay aqui é o fato de que os golpes do Guts tem colisão com o cenário, deixando ele preso em uma animação de choque por um segundinho toda vez que sua espada trisca em qualquer pedacinho de geometria. E o jogo ama te tacar em espaços fechados! Isso acaba tornando Guts' Rage uma luta constante contra o simples conceito de paredes. Um tanto que insuportável, não vou mentir.
Isso também é raramente um problema pra mim, mas Guts' Rage é curto demais. Você consegue terminar ele em menos de quatro horas, e eu acredito que essa duração prejudica a historinha aqui. Tudo acontece em um piscar de olhos, e certos momentos acabam não tendo tanto o impacto que poderiam ter se elas tivessem um ritmo mais devagar. É um bom exemplo de que mais do que escrever bem, o Miura roteirizava seus mangás muito bem, e isso é algo perdido aqui.
Não sei se nada disso é tão importante, porém. Uma adaptação de Berserk precisa de bem mais pra se tornar algo especial. A série de 97 é lembrada e amada apesar de sua animação um tanto que barata e do seu final inconclusivo. É engraçado como certos aspectos técnicos podem ser contornados, a obra se elevando acima de qualquer limitação. Uma animação memorável pode não ser lá muito bem animada. Um jogo memorável pode não jogar lá muito bem também.
É discutível se Sword of the Berserk: Guts' Rage é o melhor jogo de Berserk já lançado. Esse crédito talvez caia pra Berserk: Millennium Falcon Hen Seima Senki no Shō, lançado pro PS2 em 2004. Jogo lindo, maravilhoso! O comecinho dele recria uma das lutas mais icônicas do mangá de um jeito que eu jamais achei que seria possível. Coisa de doido, de cair o queixo! Mas eu nunca terminei ele. Jogo por uma ou duas horas, fico impressionada, e logo largo dele pra jogar coisas mais interessantes. Talvez por ele ser exatamente o que alguém esperaria de uma adaptação direta de um arco do mangá, ele acabe não sendo lá muito cativante. Já é território explorado. Não é memorável.
Um pequeno problema que eu tenho com muita crítica de videogame é o quão comum é ver gente caindo nessa mentalidade de que todo jogo é antes de mais nada um produto. Digo, é um produto, do mesmo jeito que qualquer filme sendo exibido no cinema mais perto da sua casa está lá pra vender ingresso. Mas nós não vivemos mais no comecinho dos anos 80, onde uma análise de Wizardry sai do lado de um textinho sobre o mais irado editor de planilhas pro seu IBM compatível bege que monopoliza um terço da sala de estar da sua casa. Não precisamos mais olhar pra videogames apenas como software lúdico pra matar nosso tempo. Ainda mais quando esse joguinho tem praticamente a minha idade e pode ser emulado em qualquer celular lançado nessa década. Vale muito mais a pena olhar Guts' Rage como uma pequena e quase esquecida extensão de Berserk em si, um curtinho interlúdio entre os volumes 22 e 23. Pois no final das contas, é o que ele é de fato.
A historinha tem bons momentos! Mesmo com o ritmo acelerado e com cutscenes por vezes mal dirigidas, algumas das conversas sobre o ciclo contínuo da violência na existência humana e todas essas paradas são bem Miura, e meio que eu adoro isso. Uma das minhas coisas favoritas de literatura pulp é como todo mundo sempre sabe expressar os seus sentimentos de maneira tão incisiva e direta. Sentimentos sempre tão fortes. Sentimentos as vezes um tanto que sinistros.
O Barão Balzac, antagonista de Gut's Rage, é um ótimo exemplo de um vilão de Berserk. Um vilão pulp. Alguém completamente consumido e cegado por suas paixões. Alguém com motivações surpreendentemente simples. Como já dizia Dostoiévski, pessoas perversas tem corações bem mais sinceros do que a gente dá crédito, e esse é um sentimento constante na escrita do Miura e presente aqui também. A série nem sempre acerta tanto com seus vilões, mas Balzac é ao menos o segundo barão sanguinário mais memorável de Berserk! Acho que muito seria perdido sem sua presença aqui.
Mas vale ressaltar que esses sentimentos à flor da pele também permitem que os momentos de ternura tenham um impacto bem maior. Berserk não marcaria o coração de ninguém se não fosse pelos seus momentos mais quietos, pelos poucos momentos em que seus personagens podem escapar da violência constante de suas vidas. Temos aqui um minutinho doce com a Casca, algo semelhante ao que os fãs só iriam experimentar no mangá mais de 20 anos depois. Um instante bem breve e com uma apresentação um tantinho que atrapalhada, mas meio que foi a peça final pra reascender essa paixão dormente que eu tinha por Berserk.
Algumas semaninhas atrás, logo após terminar esse joguinho em uma tarde preguiçosa da minha atual vida de desempregada, peguei o mangá pra ler de novo. Acabei devorando ele em menos de três semanas, em um ritmo parecido com que eu tive lá em 2021. Talvez seja por eu estar em um momento semelhante, um tanto que perdida e sem rumo. Talvez eu só esteja entediada e queira ver monstros sendo fatiados por uma espada gigante. Mas foi bom!
Ter contato com arte que você ama é bom. Tenho um carinho muito grande por Berserk, e agora meio que tenho um carinho bem grande por Gut's Rage também.